terça-feira, 24 de agosto de 2021

O menino da porteira - Alice Mara (*)


O menino da porteira, a quem me refiro aqui, já deixo bem claro: não é aquele que ficou imortalizado na música sertaneja que tanto sucesso fez, e faz. O menino que descrevo aqui mora no sertão, mas bem pra lá de Ouro Fino.

Um boi sem coração não o matou: ele morre lentamente, todo dia um pouquinho. Seu corpo sente a inanição: dificilmente alguém lhe dará a idade certa, aparenta ter bem menos, é franzino, não desenvolve sua mente, não lê, não frequenta uma escola.

Onde mora com sua família, a porteira existe, mas pode ficar aberta: tanto faz, aberta ou fechada. Não há o que segurar, não há nada para roubar. Os animais que outrora tinham, já morreram. A comida é escassa; a água, estão buscando cada dia mais longe...

Na choupana de chão batido, a alimentação que conseguem é suficiente para mantê-los de pé: o amanhã é sempre incerto. No pequeno rádio de pilha, único "luxo" do barraco, ouvem as notícias que os conectam ao resto do país. Será? A maioria das notícias não fazem sentido para eles. Só é ligado à noite, é preciso economizar as pilhas; eles não têm energia elétrica.

O único entretenimento do dia, traz ao garoto, naquele fim de mundo, a notícia de que aquele cantor que seu pai tanto admira, andou falando bobagens demais. Sua vida boa de cantor em final de carreira, com saúde, reconhecimento e bens, conheceu a inquietude.

O garoto nunca vai saber que o tal cantor, numa reunião em sua bela propriedade, cercado de amigos abastados como ele, tomou umas "biritas" a mais, ficou com a língua frouxa: valente, e imprudente. Não contente em se mostrar aos amigos reunidos, levou o assunto para as redes sociais. Cutucou onça com vara curta.

Tanto assunto interessante para conversar à beira da piscina, em roda de amigos, compor novas músicas. O homem se fez representante de caminhoneiros e ruralistas. As duas categorias logo se pronunciaram: - Opa! aí não, companheiro. Neste barco não estamos contigo. Você não nos representa.

A esposa do cantor até tentou avisar, meteu a "colher" na conversa. Mas o tal é do tipo cara valente: deu ouvidos não. Agora está em lágrimas, perdeu o sono, não quer dar entrevistas. Os amigos se afastaram, esperam a poeira baixar. Advogado caro já foi contratado, ainda bem que dinheiro não falta.

Na choupana, os três comentam a notícia pelo que entenderam dela. O pai sai em defesa do cantor:

- É homem honrado! Um sujeito como ele não iria se sujar em fim de carreira.

A mulher concorda, diz que vai rezar por ele. Na sua concepção, o homem é quase um santo. O garoto é o último a falar. Na sua simplicidade de criança, diz:

- Vocês estão defendendo alguém que nem conhecem, é isso? O pai  manda-o calar a boca.

Rádio desligado, silêncio. Cada um na sua cama, o garoto demora dormir. Quando dorme, sonha com um rebanho enorme de nelores, todos bem branquinhos, com bom peso, cabeça baixa, seguem um vaqueiro bem treinado na lida, astuto e matuto.

 


(*) Alice Mara, escritora, secretária do Grupo Experimental da Academia Araçatubense de Letras

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