O menino da porteira, a quem me refiro aqui, já deixo bem claro: não é
aquele que ficou imortalizado na música sertaneja que tanto sucesso fez, e faz.
O menino que descrevo aqui mora no sertão, mas bem pra lá de Ouro Fino.
Um boi sem coração não o matou: ele morre lentamente, todo dia um
pouquinho. Seu corpo sente a inanição: dificilmente alguém lhe dará a idade
certa, aparenta ter bem menos, é franzino, não desenvolve sua mente, não lê,
não frequenta uma escola.
Onde mora com sua
família, a porteira existe, mas pode ficar aberta: tanto faz, aberta ou
fechada. Não há o que segurar, não há nada para roubar. Os animais que outrora
tinham, já morreram. A comida é escassa; a água, estão buscando cada dia mais
longe...
Na choupana de chão batido, a alimentação que conseguem é suficiente
para mantê-los de pé: o amanhã é sempre incerto. No pequeno rádio de pilha,
único "luxo" do barraco, ouvem as notícias que os conectam ao resto
do país. Será? A maioria das notícias não fazem sentido para eles. Só é ligado
à noite, é preciso economizar as pilhas; eles não têm energia elétrica.
O único entretenimento do dia, traz ao garoto, naquele fim de mundo, a
notícia de que aquele cantor que seu pai tanto admira, andou falando bobagens
demais. Sua vida boa de cantor em final de carreira, com saúde, reconhecimento
e bens, conheceu a inquietude.
O garoto nunca vai saber que o tal cantor, numa reunião em sua bela
propriedade, cercado de amigos abastados como ele, tomou umas
"biritas" a mais, ficou com a língua frouxa: valente, e imprudente.
Não contente em se mostrar aos amigos reunidos, levou o assunto para as redes
sociais. Cutucou onça com vara curta.
Tanto assunto interessante para conversar à beira da piscina, em roda de
amigos, compor novas músicas. O homem se fez representante de caminhoneiros e
ruralistas. As duas categorias logo se pronunciaram: - Opa! aí não,
companheiro. Neste barco não estamos contigo. Você não nos representa.
A esposa do cantor até tentou avisar, meteu a "colher" na
conversa. Mas o tal é do tipo cara valente: deu ouvidos não. Agora está em
lágrimas, perdeu o sono, não quer dar entrevistas. Os amigos se afastaram,
esperam a poeira baixar. Advogado caro já foi contratado, ainda bem que
dinheiro não falta.
Na choupana, os três comentam a notícia pelo que entenderam dela. O pai
sai em defesa do cantor:
- É homem honrado! Um sujeito como ele não iria se sujar em fim de
carreira.
A mulher concorda, diz que vai rezar por ele. Na sua concepção, o homem
é quase um santo. O garoto é o último a falar. Na sua simplicidade de criança,
diz:
- Vocês estão defendendo alguém que nem conhecem, é isso? O pai manda-o calar a boca.
Rádio desligado, silêncio. Cada um na sua cama, o garoto demora dormir.
Quando dorme, sonha com um rebanho enorme de nelores, todos bem branquinhos,
com bom peso, cabeça baixa, seguem um vaqueiro bem treinado na lida, astuto e
matuto.
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