quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Um dia diferente - Fátima Florentino (*)


Ana acordou mais cedo naquele dia. Dentro dela, uma sensação estranha, como se alguma coisa estivesse para acontecer. Por bem, demorou-se no banho e até passou, com muito cuidado, um óleo hidratante pelo corpo molhado. Enxugou-se levemente e vestiu seu roupão de seda. Hoje seria um dia diferente.

Tomou um café da manhã, mais demorado. Fazia tempo que as frutas haviam saído do seu cardápio matinal. Olhou na geladeira, pegou um mamão papaia, lavou e partiu ao meio. Ao pegar um prato para colocar a fruta, escolheu um de louça bem fina, com uma delicada florzinha azul. Ganhara este jogo de presente de casamento.  Sorriu ao lembrar de como estava feliz naquele dia. Afinal, estava se casando com sua grande paixão. Foram felizes, enquanto durou. A paixão foi embora conforme a rotina e os problemas apareceram.

Fez um “café de coador” e o tomou com leite morno, acompanhado de pão integral com ricota fresca. Pensou consigo mesma que merecia de vez em quando um pão francês, quentinho, com a margarina derretendo sobre ele. Decidiu que isso ficaria para amanhã. Talvez depois...

Levantou-se da mesa, colocou uma música no celular e voltou ao banheiro para escovar os dentes e fazer uma maquiagem, bem leve, como de costume. Ao olhar-se no espelho notou sua pele um pouco mais flácida, com algumas rugas e “pés de galinha” que poderia jurar que não estavam ali ontem. Diante disso, resolveu dar uma carregada na maquiagem e, ao escolher o batom, optou por um vermelho que raramente usava. Gostou do resultado, parecia mais jovem, mais alegre. 

Amanheceu com um bom presságio e sentia-se revigorada. Algo estava por acontecer. Tinha certeza absoluta disso.  Hoje seria um dia diferente.

Escovou os cabelos e gostou de vê-los caídos sobre seus ombros. Viviam presos em um “rabo de cavalo” e já nem sabia mais qual era a sensação de tê-los soltos e esvoaçantes. 

Decidiu que naquele dia, usaria uma roupa diferente das quais costumava usar e, ao invés de um jeans surrado e uma camiseta básica, optou por um vestido leve e florido. Nada de tênis. Hoje precisaria de sandálias com salto, mesmo que fosse pequeno, para combinar com o traje escolhido. 

Olhou-se no espelho, gostou do que viu e rodopiou, assobiando para si mesma. Era uma bela mulher e, apesar de ter já passado dos quarenta anos, tinha a disposição e a alegria de uma adolescente.

Desceu do apartamento com o fone de ouvido conectado à música de seu celular. Cumprimentou o porteiro com um sorriso e pegou suas correspondências, na maioria contas para pagar. Nem isso a aborreceu.

Foi caminhando devagar até o terminal do metrô.  Pela primeira vez, não tinha pressa. Sabia que algo estava para acontecer. Hoje seria um dia diferente.

Pelo caminho, podia sentir os olhares de admiração e aprovação das pessoas sobre o seu novo visual. Sentia-se segura e dona de si. Estava preparada para qualquer coisa que acontecesse.

Na plataforma, enquanto esperava pelo trem, aumentou o volume do som e cumprimentou o rapaz ao seu lado. Mesmo sem ele retribuir, lhe ofereceu um belo sorriso. Pensou consigo mesma: que pena.

Mas ela não percebeu que o jovem tinha uma mochila enorme nas costas e usava uma grossa jaqueta de frio, em pleno verão. Estava feliz e radiante para prestar atenção nesses detalhes.

Não percebeu também quando ele, ao seu lado, fez umas orações e detonou a bomba que trazia presa ao corpo.


(*) Fátima Florentino é escritora e coordenadora do Grupo Experimental da Academia Araçatubense de Letras (AAL).


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